Como uma música estourou em Cuba e irritou a ditadura castrista

Considerada uma provocação pelo regime cubano, a canção de protesto 'Patria y Vida' chegou a quase 2 milhões de visualizações no YouTube em uma semana e inflamou luta cultural na ilha

CUBA — Uma incisiva canção de protesto de rappers cubanos que viralizou nas redes sociais desencadeou uma enfurecida resposta oficial em Havana e polarizou a luta cultural sobre a situação em Cuba.

A música “Patria y Vida”, que chegou a quase 2 milhões de visualizações no YouTube em uma semana, é considerada uma provocação pelo governo socialista.

Composta por famosos artistas cubanos como Yotuel Romero, Descemer Bueno, a dupla Gente de Zona e os rappers Maykel Osorbo e El Funky, a música ultrapassou 1 milhão de visualizações no YouTube em menos de 72 horas e viralizou em várias redes sociais em Cuba.

Cuba patria e vida patria ou morte
Em Havana, outdoor com imagem de Fidel Castro mostra o lema ‘Socialismo ou morte’; mais de 60 anos depois de Castro pronunciar a célebre frase ‘Pátria ou morte’, no contexto da Revolução cubana, lema ‘Pátria e vida’ ganha força entre os que pedem fim do regime. Foto: EFE/ Yander Zamora

Segundo a história oficial cubana, em plena revolução dos anos 1950, “Patria o muerte” foi um dos emblemas de Fidel Castro e de outros guerrilheiros durante a guerra.

Um lema que tem sido repetido milhões de vezes em discursos, estátuas ou propaganda oficial, tão famoso como “Até a vitória sempre.” Mas quase seis décadas depois, um grupo de músicos ousou insultar o logotipo oficial e o Governo de Cuba, que não conseguiu impedir a transmissão digital da canção, respondeu com profunda irritação.

Tudo começou na semana passada, terça-feira, dia 16 de fevereiro, quando os artistas publicaram uma música chamada Patria y vida em várias plataformas.

Granma, principal jornal do país e meio de comunicação oficial do regime, disse em uma reportagem que se trata de uma “grosseira ingerência política” na soberania nacional. A ponto de desencadear uma resposta do presidente Miguel Díaz-Canel e reações de quase toda a classe política, jornais e noticiários oficiais da ilha.

A música também gerou cisão nas redes sociais, onde muitos viralizaram o lema “Pátria e Vida”, enquanto outros mantêm seu apego à histórica “Pátria ou Morte”.

O vídeo foi gravado em Havana e Miami, e traz, da Flórida, a dupla Gente de Zona e os compositores Descemer Bueno e Yotuel Romero (do grupo Orixás), e de Cuba, os rappers Maykel Osorbo e El Funky.

Com refrãos de crítica ao governo, a música diz que “o povo se cansou de continuar aguentando” e que espera “um novo amanhecer”.

O vídeo também faz alusão a ícones nacionais como José Martí e o mais recente movimento dissidente de San Isidro, com imagens da manifestação de cerca de 300 artistas independentes, em 27 de novembro em Havana.

Pela quarta vez desde que o vídeo foi lançado, o presidente cubano Miguel Díaz-Canel reagiu no Twitter apelando a outros artistas cubanos uma contraofensiva

“A tua canção provocadora não me assusta, nem me ameaça; sei que, enquanto irradia o forte sol da dignidade, aqui ninguém se rende, Socialismo, Pátria ou Morte”, diz uma estrofe da décima de Tomasa Quiala, popular poeta repentista elogiada pelo presidente.

Dias antes, o presidente havia invocado outro peso-pesado do patrimônio cultural cubano, Silvio Rodríguez. “É assim que se canta o país”, declarou o presidente.

“Panfleto de baixa categoria”

A relação entre os compositores e o regime passou por vários momentos difíceis em sua história, e nos últimos meses parece ter entrado em outra zona de turbulência.

Segundo María Isabel Alfonso, especialista em cultura cubana do St. Joseph’s College de Nova York, a reação avassaladora do Estado “é uma ratificação de que, até agora, o governo cubano não conseguiu adotar uma postura de tolerância em relação às manifestações artísticas que criticam as falhas do modelo atual”.

Mas, na ilha, muitos criticam a mensagem desse rap de caprichosa edição e produção visual. Para o historiador da música cubana Emir García Meralla, é um “panfleto político de baixa categoria”. Segundo ele, “o orgulho nacional foi ferido” e “nenhum país admite que se ataque seu orgulho”. “Isso nos coloca como Fuenteovejuna [peça teatral de Félix Lope de Vega], todos unidos.”

“Nenhuma música vai produzir uma situação de instabilidade neste país”, diz o cientista político Rafael Hernández, que diz que a música é produto de “uma direita obstinada” em Miami. “O dominó foi bloqueado”.

A música estourou em Cuba em um momento em que as demandas da sociedade civil aumentaram nos últimos meses, devido, em parte, à recente chegada da internet à ilha, popularizada somente em 2018.

“Acabou”, cantam os rappers. “Depois de 60 anos, o dominó foi bloqueado”, concluem, usando a emblemática do jogo de tabuleiro, tão popular entre os cubanos. Eles criticam a dolarização da economia em meio à crise.

Em Miami o vídeo foi recebido com aprovação e entusiasmo, mas na ilha também despertou críticas a artistas que se tornaram famosos em seu país de origem antes de começarem a criticá-lo estando fora de lá .

Eles lembram o show que Gente de Zona, muito popular em Cuba, fez em 2018, em uma então movimentada Cidade Esportiva de Havana, onde os músicos saudaram publicamente a presença de Díaz-Canel.

Quando visitaram Miami depois disso, foram criticados e houve até pedidos de expulsão e cancelamento de shows, o que os motivou a se estabelecerem na Flórida.

“Em suma, a polêmica sobre o vídeo ‘Patria y Vida’ revela que as feridas entre os cubanos que vivem na ilha e no exterior ainda estão abertas”, disse Jorge Duany, diretor do Instituto de Pesquisas de Cuba da Universidade Internacional da Flórida. Ele observa que, embora alguns dos músicos envolvidos tenham se mudado para os EUA, as “fronteiras ideológicas entre Miami e Havana foram restabelecidas”./ AFP

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